[elucubrações precoces]

E quantas vezes ele me falou de suas impossibilidades amorosas - como quem justifica preços mais altos em feira livre, de forma muito convincente até. Eu entendia que ele sentia necessidade de valorizar-se - sofrer cria desses traumas (e verdadeiramente andou se ferrando com umas diabas lindas e perigosas – culpa do seu senso estético apurado e do pouco controle psicológico nas relações carnais, sem esquecer da sua fraqueza explícita por um bom traseiro com uma cabeça idem). Por um tempo tive pena – era mais fácil ver as coisas do lado de fora.
Entre uma resposta e outra, percebia, por baixo das lentes, uma inquietude nas órbitas castanho-esverdeadas, que naquela hora do dia pareciam ser completamente verdes - detalhe, que me amolecia ainda mais o coração - acho que uma lembrança paternal se associava a sua forte presença.
(muito embora todo o clima propício a um acordo decoroso e lúcido, algumas ações são instáveis por natureza, o que dá risco imediato a transação e provoca oscilações nos ânimos de investidores incautos).
Não fiz-me rogada, dificultando o enredo. Ainda mais, quando notei que seus dedos tremiam no passar das folhas; constando o nervosismo, com a umidade que se impregnava ao jornal. Não titubeei no blefe, por dentro as vísceras se gladiavam, só precisava articular a voz com calma, não levar as unhas à boca, nem fazer cordinhas no cabelo – ele sempre foi melhor observador que eu.
- Não faço pechincha do meu amor. Foi tudo que conseguir dizer sem tirar os olhos do monitor. A surpresa em seu semblante me forçou a ser sincera, esquecer do jogo, e completar a frase (de outra maneira), como se não tivesse feito:
-...apesar de não entrega-lo tão facilmente a quem me peça, às vezes posso doá-lo por completo a quem me interessa.
Antes que erguesse os olhos para observar sua reação diante do desdito, seu sorriso cínico corou-lhe as orelhas, e uma risada sinistra irrompeu nossa falsa calmaria.

-”Precisas aprender muito para brincar com a verdade.”

Calei-me para não grilar, me constrange perder a vez nesses estágios amorosos, não perdi o ranço de amadora, nisto ele tem razão.
Horas mais tarde, olhando no espelho, a espuma se formando ao escovar os dentes, lembrei do conselho de amigo soturno, dado por acaso:

- “A mulher não devia dar tanto valor aos homens”.


Completaria, eu: nem achar que os conhece inteiramente.

6 comentários:

Klatuu o embuçado disse...

Ai, amiga! :) Como eu queria ser um lama!
(falo do bicho estranho e não daqueles ascetas com cara de múmia seca)

Dark kiss.

Iasnara disse...

Klatuu; uma veste alaranjada não pegaria bem. Estás certo.

E, eu, gostaria de ser menos literal.

Beijos. ;)

Fabio disse...

Não sei se a máxima "nenhum homem presta" é a moral da sua estória. Tudo é risco, ainda mais quando se trata de homens; o risco dobra quando se trata de homens-que-te-interessam. Agora, caso você se refira em sua fala, de um tipo especial de homem, pelo qual você suspira, sonha e quer algo mais...aí não há risco nenhum!
Você está definitvamente ferrada!
Volte para frente do espelho e escove muito os dentes. Acredite, é verdade, o espelho nunca mente.

Iasnara disse...

Fábio
Ferrada e mal paga. Já gastei muito do meu esmalte dentário.
Alguns homens prestam, tú és um deles. Espero que quando chegar nossa vez eu não esteja banguela.

p.s.: o meu espelho é terrivel, sempre me dá uns quilinhos a mais, mas sei que gostas de fartura.

:D

Fabio disse...

É verdade, detesto coisa pequena.
O execesso me fascina.
Ter tudo.
Não ter nada.
Não tenho aquela sabedoria dos romanos segundo a qual "medius virtus est."
Cazuza, como sempre, simplifica e fala por mim: "Até nas coisas mais banais pra mim é tudo ou nunca mais..."

Iasnara disse...

Fabéculo, djavaneando a questão:

"você disse que não sabe se não,
mas, também não tem certeza que sim".

É?