Outros dias

Ele mudará de casa no próximo ano. Será uma transposição física, acompanhada dessa mudança que todos planejam no início de um novo ano.
A futura casa é bem menor e ele precisa de espaço. Vai abrir mão de muito que conseguiu nos últimos tempos. Mas isso não lhe dói em nada.
Fez as malas há uma semana, quando foi pro hotel. Em meio à correria esquecera uma coisa e outra. Para não voltar mais vezes, evitar encontros indesejados e principalmente por ser muito sistemático, organizou sua mudança numa lista. Nela consta: limpeza geral dos arquivos; jogar um bocado de papéis fora; fazer algumas doações de roupas e sapatos velhos; levar o essencial.
Esperava covardemente de tocaia numa esquina próxima, sob a sombra de uma árvore, um horário que não houvesse ninguém na antiga morada. Assim juntaria tudo e partiria pra sempre.
Às dezesseis horas, o sol estava forte. Com o caminho livre, entrou na garagem como de costume. Sentiu o bafo quente do cubículo, olhou sem apreço as suas caixas de ferramentas, a pilha de jornais velhos, a maleta de pescaria. Por ali, nada o interessava. Pela escadinha chegou à cozinha. Abriu o armário e catou sua caneca de porcelana com o emblema do time do coração. Do resto, tudo tinha muito daquele lugar. Preferiu não perder tempo.
Passou nos quartos. Nos banheiros. Na sala de estar. Na copa. Todas as paredes, móveis e utensílios eram lembranças vivas, tinha o cheio acre da separação. Não precisava de nada dali. Tampouco da recordação entranhada pelo tempo de uso comum.
Sem esforço de memória recordou que sairia de lá da forma que chegou. Apenas com o corpo, sua coleção de filmes, livros e as coisas menores que foram se perdendo pela casa.
O escritório era o lugar mais seu. Dele recolheu livros, arquivos, anotações, pilhas de papel que nunca conseguiria se livrar e foi reunindo em caixas. Levando-as direto pro carro. Repetindo morosamente a tarefa.
Antes de sair, lembrou que embaixo da escada havia uma pequena dispensa. Camuflada para não desarmonizar a decoração. Arrastou uma mesa e os banquinhos que bloqueavam a porta. Abriu o velho armário. Dentro havia varias caixas. Era curioso, mas, lhe pareciam diferentes. Pelo tempo que ficaram guardadas, tinham até algo de novidade, como se nem fossem suas. Guardara junto com as caixas seu superado hábito de juntar recordações. Tudo ali era de seu tempo de solteiro - lembranças esquecidas.
Como tudo a seu modo, as caixas estavam devidamente arquivadas. Eram tantas. Tão diversas. Tinham cores, formas, texturas e peso distintos. Começou a abri-las. Uma tinha cartas datilografadas, com selos de outro continente. Outras postais de vários lugares. N’uma, discos em vinil - as relíquias do jazz. Noutra livros com dedicatórias tão calorosas quanto seus títulos. Roupa íntima feminina havia numa rosada. Embalagens de bombons, rolhas de vinhos, lenço borrado de batom, fazia recheio de uma bem grande. Recorte de revistas e jornais, organizado em um clipping, era o conteúdo de uma caixa cinza sem laço. Fotos, Dvds e Cds, bem apertados numa pequena caixa amarela.
A poeira do tempo, refrescava pouco a memória de cada uma delas. Os momentos eram duvidosamente relembrados, com sorrisos no canto da boca e leves acenos de negação com a cabeça. Em caixas maiores de papelão bruto, encontrou fotos de gente que já se foi; livros antigos, guardados até de si de tão diletos; cartas amareladas escritas à mão por parentes. O armário tinha o perfume do passado. Pedaços do tempo passavam como um vento suave, cada vez que se abria uma caixa. Tudo aquilo parecia tão distante e tão estranho. Tinha muito pouco dele hoje e ao mesmo tempo lhe era familiar.
Continuou a mexer com as caixas. Retirou todas e tudo de dentro delas. Por fim, sobrou uma. No canto mais escondido. Embaixo de todas as coisas, havia um pequeno baú. Uma caixinha de madeira, delicadamente trabalhada, entalhe barroco, com uma fechadura que não permitia abrir. Ele sabia que era sua. Reconheceu-a. Relembrou até de quando e onde a tinha adquirido. Mas, há muito não a via. Sentia uma euforia, coisa de quem encontra um tesouro. Tinha algo valioso ali. Estava tão bem escondida. Precisava abri-la.
Lembrou então de um presente antigo que dedicara na época. Um colar com uma pequena chave como pingente. Subiu aflito, com a caixinha embaixo do braço. Revirou o porta-jóias no criado-mudo de sua ex, achou a pequena chavinha, junto a brincos, anéis, pulseiras e colares. Avidamente abriu. Um veludo vermelho embrulhava algo. Ergueu com cuidado o tecido. Lá havia uma massa gelatinosa sem vida, mas, que começou a pulsar com ar que lhe corria. Começou a fazer barulho. Aos poucos foi recuperando vida. Recobrou sua antiga forma.
Ele atônito, depois de tanto tempo, reencontrara seu coração. Teve o peito tomado de ar, como se fosse explodir. Suava frio de ansiedade. Sentia um frescor no respirar. Desceu as escadas em passos leves, estava hipnotizado pelo vermelho latente. Não sabia o que fazer. Desejou mais do que nunca sair dali.
Deixou a caixinha aberta do seu lado e olhava-a todo tempo. O músculo batia acelerado, como que grato à liberdade. Reuniu todas as coisas que tirou do armário. Agora, contrariamente, recordava de cada uma, como se acabasse de armazená-la. Estranhamente as grandes caixas comportavam as pequenas. Elas se encaixavam. Ele organizava uma a uma.
Por fim, sobre todas elas colocou seu pequeno baú, ainda com a tampa aberta. Levando a mão ao seu interior, como que tocando uma delicada bolha de sabão, tomou suavemente o involuntário. Desabotoou a camisa, encostou-o no peito. O coração batia aflito, quando mergulhou em sua carne. Ele se sentiu de imediato vivo. Esqueceu tudo que vivera até ali. Parecia que nunca havia se livrado do seu coração.
Juntou as coisas, fechou o velho armário, ajeitou a bagunça, jogou tudo no carro. Abriu a garagem. Deu partida. Tomou a rua. No caminho livrou-se do baú e sua chave numa encosta de ribanceira. No céu, apontava um fim de tarde de cartão postal, momento que há tempos ele não se percebia contemplar. Queria p'ra breve muitos dias assim.

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