Viúva do amor

Cheirava os lençóis, toalhas e roupas... Ansiando encontrar nas fibras o perfume dele. Mas tudo tinha cheiro de flor.
Seguia diariamente aquele ritual, desde que se tornara viúva. Partia bem cedo, comprava flores e velas. Rumava ao cemitério, lá limpava as ervas daninhas que relutavam em crescer em volta do túmulo, enquanto conversava com ele. Queixava-se de sentir-se sozinha, confessava a ausência dele e as dificuldades de seguir só. O sofrimento era a pauta de todo o dia.
No trabalho nada produzia, todos faziam de conta que ela estava bem, ninguém perturbava seu silêncio, tampouco ousava questionar sua nova postura sombria e distante - certamente entendiam seu pesar. Ela ia várias vezes ao banheiro, lavava o rosto e lamentava pra si a dor cada vez mais latente. Chorava muito, chorava sempre, chorava por ele e por tudo que deixara de fazer quando estavam juntos. Seu murmúrio era dorido, era profundo, mas, mudo, não gostava de declarar sua dor, nem consiga abrir a boca pra pronunciá-la. As pessoas em sua volta se tornavam cada vez menos importantes, da mesma forma que ela passava a ser mais despercebida. Tornara-se um fantasma, mergulhada em seu martírio sobrevivia em silêncio e descrença. Fechada no sofrimento, isolada do mundo.
Sua única alegria eram seus sonhos. Neles, ele sempre lhe aparecia, deitava ao seu lado, falava com ela. Na vida em que levava, apenas durante o sono se permitia sorrir, abria o coração, fazia planos para os dois, viagens, lugares, pessoas, coisas que gostaria de viver com ele. Sorria. Corria e dançava pelo quarto, ele a contemplava resplandecente de alegria, até cochilar. Ela observava o sono chegar no rosto dele e o fardo do dia pesar os olhos, como sempre fazia desde a primeira vez que dormiram juntos. Ainda amava muito aquele que não era real quando o despertador tocava. Não dormia no sono para observá-lo. Não queria acordar para viver. Não gostava de seguir aquela rotina de contemplar de fora o leito onde ele descansa. Pensava no frio que ele sentia ali, trancado naquela caixa. Palmos abaixo de onde ela pisava. Sentia na pele o isolamento que aquele corpo, que tanto calor lhe dera anteriormente, estava condenado. Pensava na tristeza que aqueles olhos alegres estariam passando. Os olhos que sempre buscavam as formas, as cores e as palavras, agora estariam para sempre cerrados, privados da luz. Pensava no martírio daqueles ouvidos, abafados naquele silêncio. Ouvidos que ouviam sua alma. Ouvidos apurados. Ouvidos curiosos e que apreciavam belas melodias. Sofria em pensar na privação daquele corpo, que sempre lhe fora chama, desejo, aconchego. E que agora se tornava gelado pelo tempo. Repetia todos os dias esses pensamentos. Antes de dormir lia as poesias prediletas dele, até cair no sono. Sonhava todas as noites com momentos que viveram. Isso a mantinha viva. Assim passaram-se dias, meses e anos. Pra ela, era sempre como antes. Como o dia em que ele se foi. O tempo nublado, o dia frio, sem vento, sem chuva, sem sol, tudo era cinza, tudo era escuro.
Certa noite ela não sonhou com ele. Acordou sufocada, se sentido culpada, não conseguia dormir. Acordou mais cedo do que de habitualmente. Foi correndo ao túmulo e chorou muito. Sentia que a alma dele se afastava definitivamente. Assim foram outras noites sem os sonhos. Mas, ela sempre voltava lá. Não queria que ele achasse que ela o esquecera. O tempo começou a abrir, dia a dia. Algumas manhãs ela sentia leves brisas. Tinha alegria em acordar e levar flores recém colhidas a ele. Numa manhã, o céu estava totalmente limpo, o azul era tão intenso que não havia risco de nuvens. O sol cegava mesmo olhando para o chão. O cemitério estava estranho, sem a névoa de sempre, parecia abandonado, flores murchas por toda parte. Ela andava, andava e não encontrava a lápide dele. Não entendia como poderia se perder num dia tão claro, afinal seguia quase que automaticamente aquele caminho todos os dias. Reconheceu o ramalhete deixado no dia anterior pelo laço azul que abarcava os talos. Sua cor predileta. Nele não havia pétalas, não havia folhas, até os espinhos secaram. As ervas cobriram todo o túmulo. Mal se apreciava o mármore. Chorou por ver aquele abandono repentino e sem explicação. Logo no dia mais claro desde a partida dele. Começou a limpeza, arrancou as pragas, soprou a poeira, esvaziou o vaso e colocou as novas flores que levara.
Quando olhou pra cruz e começou a ler os escritos que todos os dias lia, pra internalizar ausência do seu amado, percebera que lá estava escrito seu próprio nome. Sucumbira ao susto, esfregara os olhos. E não entendia. Alegou-se por um instante: "Ele não está aqui!" Pensou em reencontrá-lo, quis sair correndo a sua busca. Mas o frio cobriu seu corpo: "Quem morrera fui eu! E venho aqui todos os dias. Me trazer flores ?” Do nada o tempo se fechou outra vez. Ela sentada na lápide olhou pro céu, não entedia porque o sol se escondera tão rápido. Quando baixou os olhos ao túmulo as ervas cresceram novamente. As flores que ela acabara de trocar estavam mortas. De súbito entendeu que fazia visitas a si mesma. Chorava sua própria morte. Contemplava do outro lado da vida o abandono que sempre vivera. Resolveu se entregar. Deitou sobre seu próprio tumulo, adormeceu e sonhou pela última vez. No sonho o vento lhe vinha e ela seguia com ele. A sua alma tornava-se brisa e a sua carne liberta.



Tristeza é não ter o que dizer.

2 comentários:

Iasnara disse...

LB;
hi! é de chorar.

Alien David Sousa disse...

Querida sentir, ADOREI! AMEI MESMO!

"Contemplava do outro lado da vida o abandono que sempre vivera"

Não tenho palavras, adorei este teu texto.Não estava à espera da volta que lhe deste no final.
Beijinhos